“Pensar” a morte
A morte “da o que pensar”, O pensamento pode ser ocupar em
muitas caminhos, pode até pensar só em si mesmo, como a lógica. Mas a morte
surge como uma parede fatal que interrompe todo o caminho. Nela, o pensamento,
quando mais bater, mais sairá ferido e derrotado. Por isso, os antigos
filósofos epicuristas, que davam receitas para viver com o máximo de prazer e
equilíbrio esta curta vida que nos cabe, queiram despreocupar seus ouvintes com
a leviana fórmula: “Quando você está, a morte: quando a morte está, você não
está”. É claro que isso não resolve a morte de quem amamos e a dor que sofremos
por uma perda irreparável.
Uma vaca é morta mas não sabe, e por isso não se preocupa,
não angustia, é símbolo da tranquilidade, Nas nós sabemos que vamos morrer e
por isso nos pre-ocupamos. Quase tudo ou talvez tudo o que fazemos tem sua
razão última e secreta nesse fato: somos mortais. Nossas lutas com a saúde e a
medicina, nosso cuidado com o vestir e morar, nossa profissionalização,
economia, organizações, talvez toda nossa cultura, provém dessa luta com a
morte inevitável que procuramos adiar.
A morte revela nosso “fim”, ou seja, nossa limitação,
finitude humana. Humilha, por isso, nosso pensamento, sobretudo o pensamento de
que somos seres livres, de que a liberdade é o valor mais alto de nossas vidas,
que nos distingue como humanos e pela qual vale a pena lutar. Muitos até morrem
pela liberdade. No entanto, a norte torna nosso pensamento sobrecarregado,
pesado “preso”, e o pensamento se mistura com a angustia e agonia. Um filósofo
moderno, Martin Heidegger, ficou célebre por sua curta definição do ser humano:
“ser-para-a-morte”. No entanto, segundo ele, a morte e a finitude que ela
revela cruelmente, nos permitem antecipar uma decisão vital: ela mostra o
“nada” sobre o qual dança a nossa liberdade finita, sem raízes. Podemos, assim,
assumir esta vida limitada com única forma de ser autenticidade livres.
Os Filósofos anteriores, porém, sobretudo o grande Platão,
tomaram uma direção contrária: pela alma nós somos imortais, embora pelo corpo
sejamos mortais. É o “dualismo” de corpo/alma como forma de solução. A alma
participaria da esfera divina e imortal por sua forma espiritual, incorpórea.
Na verdade, isso é mais uma “opinião”, pois que de nós sabe o que é puramente
espiritual, uma vez que tudo em nós, até os sentimentos mais espirituais, têm
uma base corporal? Nós não sabemos o que é ser fora do corpo, apesar de todos
os esforços exotéricos. É duro ser autêntico e reconhecer, como fez Heidegger,
de que não podemos saber se somos imortais nem pela alma, e que o dualismo
grego é antes fruto de um desejo. Este desejo de imortalidade pode estar nas
religiões, na filosofia, na ciência, na tecnologia, em tudo o que fazemos. Nós
queremos ser felizes, e garantir esta felicidade “para sempre”, desejamos
imortalidade. Se não é imortal, a felicidade não vale a pena, o balanço de
custo-benefício faz o peso da balança afundar nos custos. Mas desejar ser
imortal não é provar de que somos de fato imortais. É a morte dos que amamos
revela o contrário, abre o abismo da morte em que mergulha o amor, um amor que
quer se “para sempre” e, por isso mesmo, é o que há de mais doloroso na
catástrofe da morte.
Gabriel Garcia Marques, prêmio Nobel de literatura, afirmou
que há apenas dois assuntos pelos quais vala a literatura: amor e morte. Tanto
o amor como a morte se encontram como os maiores inimigos na grande trama e
batalha que decide a via no seu extremo. A ficarmos com o Cântico dos Cânticos, da Bíblia, o amor
é o único capaz de enfrentar a morte de frente., porque “amor é forte como a
morte”. De certa forma, “amar é morrer” porque o amor no joga para fora de nós
mesmos em direção a quem amamos. E exatamente por isso, quando a morte nos toca
a nos aniquila, não nos encontra mais em nós mesmos, não porque já não somos,
como pensavam os epicuristas, mas porque estamos na pessoa amada. A morte não
consegue aniquilar o amor, nem sequer consegue tocá-lo, pois é próprio do amor
fazer morrer para si mesmo antes mesmo da morte, habitando e se abrigando em
quem se ama.
Mas sobra uma derradeira pergunta: e quando morre a pessoa
amada? Então a saudade nos leva junto, pois a saudade é um laço doloroso e
inquebrantável, que atravessa a morte e que o tempo o tempo não destrói. A
saudade é memória mais longa do que a morte, fidelidade que nos vai conduzindo
pelas frestas da parede da morte numa luta de gigantes. A saudade é um amor à
distância, que abraça o infinito, impulsionando à união, apesar da morte.
No entanto, a saudade, como avisa a psicanalise, é perigosa,
pois pode nos paralisar e nos fazer viver só do passado. Esta é meia verdade. A
outra metade é mais importante: Ela pode transformar em esperança, em força e
confiança diante da morte, porque a morte de quem se ama é uma partida que abre
espaço para se amar mais, para se cuidar de outros mortais que também precisam
de amor para não cair na batalha contra a morte. O amor verdadeiro, que faz
morrer para si mesmo, ensina a amar sem egoísmo e sem retorno, a alcançar o
regaço, as mãos, o socorro, para os que estão em perigo de morrer. Um amor de
verdade obriga a preocupar-se mais com a morte dos outros do que com a própria.
É quando eles morrem, o amor cada vez mais ausente e definitivo abre ainda mais
espaço e mais caminho pra continuar a obra do amor que vence a morte dos que
aqui morrem. Uma “filosofia da morte” só pode ser bem pensada se for de frente
com uma “filosofia do amor” – fortes como a morte, enlaçando amor e morte em
dramática e terrível poesia. “No entardecer da vida, o que vala é ter amado”.
Luis Carlos Susin
PoA/15.10.03